terça-feira, 1 de abril de 2014

Rompimento é liberdade

Era uma vez uma moça que ficava online e lá se relacionava com outras pessoas online. Ela brigava por uma causa social nobre e simpática, participava de diversas maneiras dessa causa e no ambiente online começou a encontrar os "companheiros de luta" como ela gostava de chamá-los.

Nasceu amizade com um desses companheiros de luta dela. Ele era escrachado, tinha em comum com ela, além da mesma causa social, falar tudo que vinha a cabeça, sem pensar. Ela discordava de 80% do que ele escrevia, porém, as idéias dele, sob o ponto de vista dela, equivocadas, não feriam nenhum dos seus princípios e com referência a causa social deles eles concordavam em 100%. Isso fez com que os anos passassem e eles se aproximassem. Na prática, se defendiam, a cada conquista de um, o outro era incluído e eventualmente, desabafavam um com o outro. Uma relação que não era intensa, mas era profunda.

Todo ser humano é carente, e, carentes, fazem coisas para cativarem uns aos outros. A atuação no trabalho social é uma das coisas que as pessoas fazem para se cativar mutuamente. No caso dele, a atuação social era insuficiente, ele gostava de dar declarações polêmicas, posar de politicamente incorreto, causar. Mas como era bom caráter e acertava em muitas coisas, ela tolerava todas as diferenças.

Um dia, surgiu uma notícia de que 65% dos brasileiros, dentre os entrevistados muitas mulheres, achavam que mulheres que usam roupas sensuais merecem ser estupradas. A notícia não choca nenhuma mulher. Todas sabem na pele que a mentalidade do brasileiro é assim. Todas são vítimas do machismo, incluindo as machistas. O machismo é essa coisa nojenta, forte, impregnada na cultura do mundo, no Brasil num nível mais grave, o que interessava na pesquisa era o gancho que as mulheres precisavam para pedir que simplesmente parassem com o machismo.

Ele se pronunciou como não acreditando na pesquisa, dizendo que era uma manobra de massa. Oi? Ela tinha naquele momento o intolerável: estava diante do amiguinho polêmico posando numa atitude absolutamente machista (sim: fingir que machismo não existe ou não é tão grave, é machismo). Dessa vez, ele feria um princípio e ela precisava, por um compromisso consigo própria, se pronunciar. Foi o que fez: no post dele ela comentou que machismo era real e sério e que ela falaria com ele inbox.

Inbox ela explica que a pesquisa mostra a realidade, sim!  Que ela mesma e amigas diretas passaram por violência e a pergunta é sempre "o que você estava fazendo lá", "que roupa você estava usando" , "você bebeu" e coisas do tipo. Não se trata de perguntas simples, mas perguntas que, depois da resposta da vítima são seguidas de "ah, mas você queria o que também?" e que isso, essa responsabilização da vítima desse crime horroroso é uma segunda violência ainda mais séria e que ele tinha que se retratar, afinal, era inviável pra ela ler aquilo. Caso ele não se retratasse, o rompimento era a única alternativa enxergada por ela.

Ele responde que a raiva dela era pautada numa experiência pessoal, que existe violência da mulher contra o homem, que ele tinha direito a opinião dele.

Ora, opinião dessas? Isso é injustiça, não opinião. É absurdo do homem, branco, hetero negando que existe machismo, racismo, homofobia e desmerecendo o sofrimento das suas vítimas. Mentindo para si próprio em público e angariando seguidores (a internet possibilita isso). Opiniões merecem respeito e debate, só que no caso das injustiças o que cabe são esclarecimentos e combate. Ela pediu que ele parasse de argumentar uma vez que o simples fato dela ter que justificar o que ela já havia explicado a magoava mais. Ela já sabia, no seu íntimo, que o momento do rompimento tinha chegado.

A separação sempre envolve algum tipo de sofrimento. O medo da saudades, de abrir mão, de tomar a decisão justa quando ela depende do nosso movimento. Esses medos nos causam sofrimento. Em contra-partida, se você fica triste porque abriu mão de algo externo, no caso, um amigo, imagina se você abre mão de um valor. Abrir mão de um valor é ferir-se a si próprio no íntimo, é destruir a própria identidade e perder tranquilidade até pra se olhar no espelho. Consciente disso, ela lamentou a morte simbólica do amigo dela, enfrenta o luto e se sente aliviada por ter mantido a lealdade com ela mesma. Desfez as conexões online, incluindo uma página que faziam juntos, e veio escrever esse texto, como última homenagem ao que aconteceu de bom na vida em comum com ele.